terça-feira, 18 de setembro de 2018

Filosofias numa mesa de bar

     Cansado demais, meus olhos pesam... Não sei se é o Sono, ou sua meio-irmã, Morte, que vem ao meu encontro, num canto escuro da taberna. Há quanto tempo estou aqui ou quantos copos já bebi, eu não sei. Apenas espero, pacientemente, pela visita de meus companheiros. E que, ao menos um deles, traga paz a essa alma ébria, vadia e desleixada, como sequer essa taberna, os bordéis ou as ruas, já fizeram. 

     Uma sombra se aproxima. A luz da vela está baixa e trêmula e estou embriagado demais para discernir pessoas que vem de pessoas que vão. Mas essa sombra se aproxima sorrateiramente. 

     - Posso me sentar? – perguntou, já sentando. – De todos os lugares dessa taberna, esse é meu favorito. A melhor visão. 

     Era, então, um garoto, rosto limpo, olhos e cabelos escuros como a noite, embora sua pele fosse alva como rosas brancas sob o amanhecer. 

     - Desculpe-me, mas espero alguém. Temo que sua companhia possa atrasar ao meu encontro. 

     - Não se preocupe, eles não virão essa noite. 

     - Quem? 

     - O Sono e a Morte. Deveria saber que não é o único que os espera. Mas estão todos equivocados. Nenhum deles virá a essa taberna hoje. 

     - Mais alguém os espera? Aqui? hoje? Como... Como você...? 

     - Como eu sei? Ora, todos sabem que, se quiser encontrar um dos dois irmãos, deve-se vir a este lugar. Praticamente todos que aqui estão têm esta finalidade. Exceto as taberneiras. Elas têm medo. Não querem dormir para fugir dos pesadelos e temem a Morte. E acham que, servindo a eles, auxiliando-os através do trabalho que aqui exercem, serão poupadas. Mas, e você, quer ser poupado, John? Ah, sim, ouvi seu nome enquanto conversava com uma das taberneiras. Whisky, certo? A propósito, desculpe-me pelos maus modos, pode me chamar de Sibila. 

     Só então percebi, discretamente, uma pele delicada, levemente rosada, digna de uma moça refinada no auge de sua juventude. Possuía um contorno delicado em seus lábios, mas, ainda assim, seu rosto carregava determinados traços masculinos. Não rudes, apenas masculinos, com autoridade e força. Um sutil hermafroditismo, tão poético quanto seus gestos e sua fala. Comecei então, pouco a pouco, a me interessar mais pela minha mais nova companheira. 

     - Quase a confundi com um garoto. Mas, olhando bem, você parece ser uma jovem adorável. Por que se veste assim? 

     - Minhas roupas masculinas são facilmente explicáveis pelo ambiente no qual estamos. Cabelos longos, lábios rubros e grandes decotes fariam com que fosse facilmente confundida com uma das taberneiras, e eu não quero fugir do Sono ou da Morte. 

     - Mas você mesma disse que nenhum deles virá esta noite. 

     - A visão desse lugar é realmente a melhor de todas – disse, desviando o olhar ao redor. 

     - Por que diz isso? 

     - Daqui pode-se observar todo o resto da taberna. Todos os ângulos, todas as conversas trocadas, toda a decadência e toda a busca. Olhe você, vê aquele homem alí? O de longas barbas grisalhas, que também bebe Whisky? Observe o seu lamento. Toda a amargura. Um erudito, que perdeu tudo na vida por conta de um amor não correspondido. Consegue imaginar o quanto ele sonha poder dormir em paz, ou morrer, e terminar com sua dor? 

     Ela tinha razão. Pobre homem. Para mim, era igual a todos os outros daquele lugar, um beberrão inveterado, desligado do mundo. Mas suas observações despertaram minha atenção para ele. E era como se, realmente, pudesse sentir toda a sua fúria interior. 

     - Olha só quem acaba de chegar. Bem na hora! - Chamou-me ela a atenção para um homem de meia idade, cabelos castanhos, roupas caras e uma aparência desinibida e bem conservada. 

     - Ele vem aqui quase todos os dias. É um coitado, apesar de tentar exibir-se como alguém bem resolvido. Não recebeu de sua mãe o carinho adequado, dom com o qual toda mãe deve nascer. Busca suprir essa carência na companhia de uma mulher. Mulheres fáceis são a sua atração. Tudo o que quer é alguém que durma com ele a noite, fazendo-o sentir-se seguro, amado, e que acorde ao seu lado pela manhã. Entretanto, busca isso nas taberneiras, logo elas que fogem do Sono. Por isso nunca satisfaz seu anseio e retorna cada vez mais desiludido. 

     Será que ela conhecia mesmo essas pessoas ou inventava tudo aquilo para me impressionar? Afinal, haveria motivos para tentar impressionar-me? Parecia fazer tanto sentido o que dizia... Por que será que nunca havia reparado nisso antes? Sempre gostei de me sentar naquele canto da taberna e o desperdiçava deste modo. Na minha juventude também gostava de reparar nas pessoas. Aprender com elas, compartilhar suas dores e até mesmo comemorar com elas por motivos singelos. Mas acabei perdendo isso com o tempo. A sociedade ensina o homem a fechar-se nele mesmo e acaba fazendo com que não reconheçamos mais no outro nossa própria existência. Mas Sibila fazia isso muito bem. Era como se lesse a alma das pessoas através de seus olhares e trejeitos. Fazia isso comigo também, e comecei a perceber apenas a tempo dela começar a falar: 

     - Nenhum deles virá essa noite, John, porque é comigo que você deveria se encontrar. Não é o Sono ou a Morte que devem concebê-lo, mas sim a Verdade. Você já foi, antes, um grande conhecedor. Conheceu o mundo através de seus próprios olhos e foi além. Conheceu o mundo de fora e também o de dentro. E conheceu o mundo dos outros, cada pequeno mundo que faz parte dessa unidade maior. Nesse processo, você venceu a necessidade de isolar-se nas fantasias do Sono e até mesmo o medo da Morte. Entretanto, o seu desgaste para o encontro com a Verdade foi tão grande que você foi desiludido, sentiu-se abandonado e preferiu entregar-se, como todos os outros que aqui estão, parados, neste mesmo lugar. Não é certo entregá-lo para eles. Seu lugar é comigo. Seu mérito, a Verdade. 

     Foi então que virei meu último gole de Whisky, deixando para trás o velho barbudo que se lamentava com toda uma garrafa. Saí acompanhado, traindo os anseios do triste conquistador que também lá se embebedava. E passei a noite toda com ela, amando-a, desejando-a, em pleno êxtase; a minha profetiza, que não só me trouxe a Verdade, mas também o Amor, seu mais belo filho, a quem jamais imaginei alcançar.

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